quarta-feira, 31 de agosto de 2011

052

A sirene toca pontualmente às seis.

Eu abro os olhos e lamento a luz da manhã. Hora de acordar.

Saio da cama lentamente, ando até meu pequeno banheiro e tomo algo que agora chamamos de banho. A água é racionada e todos temos uma cota diária de água potável. Embora nos último dias não tenhamos tido problemas com ataques, a água tende a falhar uma ou duas vezes por semana. Cerca de cinco minutos tem de ser o suficiente, caso contrário, não conseguirei me lavar à noite.

Mas esse é o tipo de situação com que a gente se acostuma.

O café da manhã não existe mais. Frutas, pães e leite foram resumidos a uma ração em pó ou para os mais afortunados, barras de ração com algum sabor diferente.

Preciso trocar de roupa. Calça, camisa, colete de proteção. Ligo a TV, o noticiário tem as mesmas manchetes de ontem, nenhum ataque notável, nada muito importante. A fábrica ainda estará lá quando eu chegar.

Não faço nada além de dobrar a cama para dentro do armário, bagunçada como sempre.

Pego minha mochila, tranco a porta na primeira, segunda, terceira trava, passo o cartão, tranca novamente.

Conheço os vizinhos, mas nunca se sabe, os tempos são difíceis.

Hora de descer. Encontro meu colegas de trabalho já no hall do andar. Agora, cada fábrica tem seu edifício protegido, cercado, murado vinte e quatro horas por dia. A segurança é imprescindível, essa região ainda não foi totalmente limpa e isolada.

Conversa de elevador. “O dia está limpo, não?!” Sim, o dia está limpo há mais de trinta anos, seco, empoeirado. Lindamente igual.

As ações do Convex subiram, disseram que houve um golpe, vazamento de informações.” Essa eu não sabia. O Convex domina o mundo hoje. Nossos sistemas de segurança são fabricados por eles, e eles estão por toda à parte. Dizem que a “praga” surgiu durantes testes com armas químicas em seus laboratórios, e agora eles faturam pela contenção do monstro que criaram.

A entrada do prédio ainda é antiga, mas melhorias foram feitas nos últimos anos.

São três enormes portões que levam a um pequeno pátio, que já foi nossa antiga área de lazer. Os dois últimos portões são eletrificados e guardados por enormes canhões de prótons, assim como o resto do muro. Nada muito impressionável, comparado às humildes residências dos mais importantes.

Mas trabalhadores são sagrados e suas vidas asseguram as dos demais.

Adentrando o pátio vejo o ônibus que nos levará até o trem. Aí sim é que pode-se ter uma idéia do caos que vivemos hoje. A enorme máquina de guerra é um confortável transporte de seres humanos, blindado, fechado e armado. Não precisamos de janelas, precisamos de guardas armados tais como eram os videogames do século XXI. E achávamos legal.

Cerca de mil pessoas moram no mesmo condomínio que eu. Todos trabalham na mesma fábrica de ração humana e animal. Imagine como gosto dessa ração.

São seis turnos de trabalho e ônibus que levam e trazem essa gente o dia todo.

Não costumo prestar atenção às conversas no trajeto, mas hoje é um dia particularmente especial. A tal alta das ações do Convex é o assunto e cada um tem a própria teoria da conspiração. Ouço ao fundo alguém dizendo que a informação de uma nova arma será lançada e que isso beneficiaria um determinado acionista, magnata das comunicações.

Fico pensando em que isso poderia me interessar. A vida continuará a mesma e eu vou continua comendo ração.

O caminho não é tão longo, talvez quarenta minutos, e pelo que podemos perceber fechados nesta caixa é que a velocidade é bem baixa. Apenas um monitor mostra o caminho.

Árido, vazio, irreconhecível. Escombros do que um dia foram nossas casas.

Percebo os guardas tensos, vestidos em suas armaduras high-tech e com suas armas em punho.

A câmera do monitor muda para a parte traseira do ônibus, e alguns se assustam ao ver as criaturas nos seguindo. Humanóides com cerca de dois metros e meio de altura, seguindo em motos improvisadas se preparam para abrir fogo. Seguem o transporte pela rua, única parte sem entulhos e um ou outro ainda surge da ruína das casas ao redor. O ônibus acelera.

Podemos ver tiros indo em sua direção e derrubando um a um.

A ameaça é derrotada, e pela escotilha traseira um dos guardas faz sinal de que está tudo limpo. Mas eles continuam tensos.

Ninguém diz nada. Como se o som pudesse atrair atenção indesejada novamente.

Algo como vinte minutos passam e mais nenhum incidente ocorre.

O ônibus segue pela plataforma elevada por cima de uma enorme muralha, passa por um túnel metálico eletrificado e desce próximo ao trem. Consigo ver três dos guardas descerem na frente e acenarem para o posto de vigia na saída do túnel.

Assim que somos liberados, eu desço do ônibus e vejo o guarda que estava no fundo, conversando com alguém que aparentemente tem uma patente superior. Os rostos preocupados demonstram que o ataque foi algo incomum, o que concordo, nunca aconteceu no meu turno.

Sigo para o trem.

Nada além de uma enorme minhoca de aço blindado, sem janelas nas laterais, apenas alguns vãos para o cano das armas.

De todo o seu comprimento, saem antenas que prendem fios de alta tensão, mas não como os de antigamente. As armas de prótons tão populares agora são a versão mais recente que a tecnologia permitiu.

Aqueles pequenos cabos transportam energia suficiente para matar a todos dentro do trem se algo der errado, e o perigo que combatem vale o risco.

Também por toda a extensão do trem existem lâminas retráteis, feitas de uma liga de metal praticamente indestrutível, mais uma obra prima da nossa querida Convex. Dizem que os nossos coletes de proteção também são recheados dele, por ser leve até acredito que isso possa ter alguma verdade. Mas o investimento....

O policial da estação indica a entrada do vagão, onde cada pessoa já tinha um local pré-estabelecido, fato que eu nunca consegui entender, mas continuo andando. Subo a pequena escada de metal, viro à esquerda no corredor, e paro em frente à minha cadeira.

A placa onde existia meu nome tem agora no nome de outra pessoa. Estranho. Olho para o homem de uniforme mais próximo, aponto para uma poltrona mais a frente que estava vazia, ele nada diz.

Ando novamente até ali, sento e finalmente consigo relaxar. As pessoas vão se acomodando lentamente, ainda posso perceber uma certa ansiosidade no ar. A preocupação diária é ainda maior hoje.

A linha onde o trem circula é uma antiga linha de metrô. Ela cruza uma parte da cidade que ruiu e não foi possível remover as toneladas de destroços para abrir as passagens. Ao invés disso, o governo achou que seria mais seguro reabrir os túneis e não ter de enfrentar as aberrações lá em cima. Um dos maiores erros cometidos desde o nosso “fim do mundo”.

Assim que os primeiros trabalhadores começaram a entrar descobriram que o problema da superfície não era nada comparado ao habitantes dos subterrâneos.

A mutação que afetava as todas as vítimas do holocausto agiu diferente em cada espécie e aqui embaixo, os monstros tornaram-se gigantescos e implacáveis.

Centenas de trabalhadores foram engolidos pela escuridão até que um plano de contingência fosse capaz de isolar o túnel com segurança suficiente para que fosse possível desobstruir as passagens.

Nós não tínhamos trabalho naquela época e a alimentação era muito escassa. Tínhamos que aceitar que o trem seria a salvação e que o risco de morte era melhor do que morrer de fome aos poucos.

Com o tempo mais e mais linhas foram reabertas e os acidentes nas viagens tornaram-se mais raros.

E aqui estou eu agora. Tirado dos devaneios pelo barulho das incontáveis travas, portas e sistemas de segurança. Comparado com o metro de antigamente, este é um trem de luxo. Poltronas confortáveis e espaçosas, monitores com a única rede de notícias que temos e o assunto continua sendo o Convex.

Cansei”

Viro para o lado e durmo. Cerca de uma hora de viagem, sem saber se chegarei ou não. “Deve ser mais ou menos, umas sete da manhã”, ouço alguém do meu lado. “Pelo menos o atraso não é nossa culpa.”- Alguém responde. Um leve som de riso se espalha pelo vagão, momentos antes do freio de emergência ser acionado e dos gritos dos soldados virem dos últimos vagões.

Sons abafados de tiros partem de dentro para fora e um urro colossal vem seguido do chacoalhar do trem e de outro urro.

Pelos monitores das câmeras de fora é possível ver a sombra de algo parecido com uma minhoca gigante, e a visão noturna dá a impressão de tentáculos saindo da boca.

Um alarme soa e o trem começa a acelerar novamente. Dessa vez a velocidade é bem maior do que a normal, e mais uma vez olhando pelo monitor, vejo o pulso de energia em volta do metal das antenas, seguindo em ondas pelos cabos até o final.

As pessoas no vagão de trás correm até a frente, sentam-se nas poltronas livres. Vejo nitidamente o pânico em seus rostos. Cena inimaginável, por mais que pudesse ser comum.

Os tiros continuam, um dos soldados é arrastado para fora junto com um pedaço da escotilha traseira do vagão. Seus gritos param no momento em que um pulso de energia atinge a criatura.

O trem consegue finalmente se desvencilhar do monstro. Um recado soa nos alto falantes: “Seguiremos a viagem em velocidade máxima, por favor, mantenham-se sentados em suas poltronas”. Ao mesmo tempo em que um soldado passa um recado pelo seu comunicador em tom baixo, e a única coisa que eu posso ouvir é “Ataque evadido. Mobilizar tropas de limpeza”.

Não consigo sequer fechar os olhos. A imagem no monitor ainda mostra a traseira, o túnel e o buraco no metal blindado por onde o soldado foi arrancado. Ninguém fala mais nada.

Das pouco mais de 50 pessoas no trem somente metade nunca passou por isso.

Eu estou entre elas. Ninguém se acostuma.

O ocorrido de hoje não causou baixas civis”, diz o homem do comunicador antes de ir até a cabine.

Minutos depois a câmera do monitor aponta para frente. Luz. Chegamos.

O auto falante novamente é acionado. “Senhores passageiros, caso haja alguém ferido, por favor, contate nossos agentes na plataforma de desembarque. Pedimos desculpas pelo ocorrido e tenham um bom dia.”

Desço. Chego no trabalho feliz como nunca tinha estado antes. Estava vivo. Mas tinha medo. Medo de fazer o caminho de volta. Dois ataques no mesmo dia, dentro de duas horas, não era comum. Começo a sentir o pavor que já tinha visto no rosto de outros...

Me resta trabalhar. Produzir a nojenta ração para humanos por seis horas seguidas antes de entrar novamente no comboio da volta. Não quero conversar, não quero voltar. Eu tenho que voltar...

Minuto após minuto o dia passa. Pacote após pacote de ração. É isso o que eu faço. Olho as máquinas que empacotam a porcaria que nós comemos. Mais alguns minutos.

O alarme soa. Hora de sair. Vou para o armário, valido o cartão que libera a água para o meu apartamento e a comida. Hora de voltar para o trem.

Minhas mãos tremem levemente, sinto o suor descendo pelo rosto. Vejo que todos estão tão tensos como eu, ninguém tenta conversar, ninguém mais lembra das notícias. Todos tem medo.

O trem está lá, sem nenhum arranhão, mas não é o mesmo trem. “O pessoal da contingência limpou o caminho, disseram que a briga foi feia. Perderam mais dois homens lá dentro hoje.” – Disse um dos trabalhadores mais antigos. “É, foi o que aconteceu ontem. E ainda vem dizer que estamos ha uma semana sem ataques... Palhaços, é isso que somos!”

Começo a andar e sigo até a escada, entro e viro à esquerda. Olho para o guarda... “posso?” digo apontando para o banco. Ele nada responde.

Sento na poltrona, tento relaxar. “Não quero morrer tão jovem.” – “Pensamento imbecil”, digo para mim mesmo.

As pessoas vão entrando, sentando, ainda ninguém conversa. Os soldados na plataforma entram e dão o sinal para a partida. Travas, travas de novo e de novo. As portas e o sistema de segurança fazem exatamente como sempre fizeram e o trem se prepara para partir.

O túnel da volta é o mesmo. O mesmo caminho nos leva por entre o concreto e o aço reforçado. Sem muitas bifurcações por segurança, os trilhos foram fixados ao chão e as rodas dos trens são encaixadas nos trilhos, evitando que o trem seja sacudido demais.

Não sei onde fica a reserva de energia que sustenta todo o sistema, mas acredito que seja externa. A parada de um trem dentro do túnel seria morte certa para todos os seus ocupantes e sem dúvida para o próximo trem que viria na mesma linha, algo com um custo incalculável, sem pensar no pânico que geraria na população.

Eu tento dormir, mas a apreensão é geral. Olho no relógio que está parado desde ontem e eu não sei como não percebi. Deve estar no fim.

Mais alguns minutos e novamente a luz. O fim do dia, céu claro, dando os primeiros sinais do pôr do sol.

Acabou. Chegamos. As portas se abrem, desço.

No horizonte, já levemente alaranjado, o sol começava a tocar a terra. “Um momento mágico” – Pensei. Ainda estou vivo.

Meu coração bate mais tranqüilo. Agora só falta o ônibus e os incidentes realmente são mais raros. Ando apressado, o transporte já estava lá. O céu mais escuro a cada minuto e os outros demoram a entrar. Vou ficando menos tranqüilo. De fato, minha tranqüilidade some em questão de minutos.

Outro ônibus traz os trabalhadores dos últimos turnos, somos obrigados a esperar que ele entre, manobre e só então as portas são trancadas e o transporte segue em direção à rampa e à passagem para a rua.

Desespero. É a única coisa que passa pela minha cabeça. O monitor da câmera externa mostra agora com infravermelho que não existe nenhum movimento lá fora. O ônibus se arrasta e cada minuto parece dois. “Pare, seu imbecil, você fez isso nos últimos vinte anos da sua vida, por que está nervoso agora? Achou que daria sorte para sempre?” – Mas o pânico parece cada vez mais forte.

Já está totalmente escuro e o transporte para. Ouço o abrir dos portões do condomínio e vejo os holofotes lá fora, certificando-se de que estávamos sozinhos.

Não me lembro de ter visto as portas do ônibus abrindo e nem sequer de chegar ao elevador. Vejo agora o meu apartamento. Minha cama está aberta e a televisão está ligada. Minhas coisas não estão lá. “Mas eu tranquei a porta...”

Sento na cama e começo a finalmente prestar atenção no noticiário, algo que eu não fiz por dias. A repórter demonstra horror ao listar uma enorme quantidade de vítimas de um ataque no túnel da linha 8.

Era a minha linha. “Mas eu estive lá ontem e não aconteceu nada...”. Os nomes começam a subir lentamente na tela seguidos de fotos. Um conhecido... dois conhecidos... O desespero está instalado. Mais alguns conhecidos...

Flashes invadem a minha cabeça. Imagens do trem sendo sacudido, vozes, gritos e garras. Tiros. Não consigo ver o que se aproximou, mas eram vários.

Soldados correm e caem, eu me levando da poltrona, mas algo me alcança.

Vejo sangue, metal retorcido, pessoas jogadas por todos os lados.

Eu caio no chão, sentindo dor e frio. Não sei por quanto tempo fiquei ali. Finalmente, não sinto mais nada.

As imagens somem, consigo focalizar novamente a televisão. A lista de vítimas. Lá está o meu nome. A minha foto...

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